O Enem não conhece o Brasil
Por Aline Locks*, CEO da Produzindo Certo
Ao longo de 2023, até o começo de novembro, as equipes de campo da Produzindo Certo rodaram mais de 226 mil quilômetros por praticamente todas as regiões do País. Estrada boa, algumas nem tanto, mas sempre com olhar apurado de quem conhece o Brasil. Um Brasil que, aparentemente, o Enem não conhece.
Fosse um episódio isolado, a desinformação promovida pela inclusão de pelo menos três questões anacrônicas e com tom crítico à produção agropecuária no Exame Nacional do Ensino Médio mereceria protestos – como os que, de fato, ocorreram. O ponto é que elas são parte de um contexto mais amplo em que os integrantes da banca organizadora das provas se inserem.
Enquanto o agronegócio avançou nas últimas cinco décadas em velocidade estonteante, os formuladores das obras que guiam a educação brasileira parecem ter estacionado em uma era em que o urbano era moderno e o rural, o atraso. Essas décadas de desatualização, infelizmente, ainda são reproduzidas em grande parte do conteúdo escolar recomendado às novas gerações de brasileiros. É o que elas veem, se não têm oportunidade de conhecer o Brasil real que se desenvolve no interior do País.
A resposta às questões do Enem deveria ser uma passagem de ida às regiões onde o Brasil é menos desigual ou mesmo um convite a visitar dados de órgãos oficiais ou de instituições que se dedicam a desenhar retratos socioeconômicos do País.
As evidências do Brasil agroindustrial que promove desenvolvimento – e não relações de vassalagem e de exploração, como indica um dos textos usados como referência no Enem – estão por toda parte. Muitas foram destacadas nos últimos dias, em um movimento reativo de entidades e pessoas envolvidas com o agronegócio. Deveria passar a fazer parte do material didático fornecido aos estudantes brasileiros.
Note-se, por exemplo, o que aponta o IBGE nas primeiras conclusões das análises dos dados do mais recente Censo brasileiro. O trabalho realizado em 2022 e divulgado há dois meses aponta que a população brasileira cresceu 6,5% na última década, um ritmo menor que em períodos anteriores. Enquanto em grandes centros urbanos houve uma redução nas taxas demográficas, nas regiões de maior atividade do agronegócio, os dados indicam crescimentos exponenciais.
Cidades como Sorriso e Querência, no Mato Grosso, por exemplo, deram saltos populacionais de 66% e 105% no mesmo período. Os dois municípios estão entre os 10 maiores produtores de soja do País. Têm demanda por trabalhadores, que chegam de várias regiões. O próprio estado cresceu três vezes mais que a média nacional.
Em entrevista ao site AgFeed, a superintendente do IBGE em Mato Grosso, Millane da Silva, explica com simplicidade esse fluxo migratório no sentido inverso ao de décadas atrás, quando se via o inchaço das grandes cidades provocado por trabalhadores rurais desempregados. “Nesses 10 anos muita coisa se modificou, com a agricultura tecnificada se especializando cada vez mais”, comentou.
Ela explicou que junto com a agricultura, que gera empregos por si só, as cidades geram uma demanda por outras áreas como o setor de serviços, manutenção de máquinas e comércio, por exemplo. “A população da região cresceu 20,5% enquanto o número de domicílios subiu quase 50%. Houve construção civil, atividade imobiliária, e tudo isso atrai a população”.
Mais recentemente, uma reportagem do Estadão trouxe novos dados corroborando essa análise, também produzidos pelo IBGE. Segundo o instituto, o Índice Gini, referência para indicar nível de desigualdade socioeconômica, da região Centro-Oeste, principal polo agroindustrial do País, se aproxima rapidamente dos níveis da região Sul (também com economia tradicionalmente atrelada ao agronegócio), para se tornar a de menor nível de desigualdade.
O Brasil rural está longe de ser perfeito, mas não é, em sua enorme maioria, um território sem lei, onde coronéis impõem-se à força sobre o campesinato, como se dizia em outros tempos. Mas é um espaço de avanços, de incremento do uso da tecnologia, de aprendizado nas técnicas de conservação de solo e ambiental. Há leis específicas para regular o uso da terra, como o Código Florestal, e há, além do estado, interesses privados de mercado zelando para que elas sejam cumpridas.
O que ainda não há na mesma proporção é menção a esse Brasil nos livros e currículos escolares, do ensino básico ao superior. Em um artigo publicado no site The Agribiz, Lygia Pimentel, sócia da consultoria Agrifatto, recupera um estudo feito pela Associação De Olho no Material Escolar que aponta como o setor tem uma extensa lição de casa quando o assunto é a sua imagem: “60% dos textos escolares retratam o agronegócio de forma negativa, sendo que 87% das menções são autorais, ou seja, não têm embasamento jornalístico ou científico”.
Conhecer o Brasil deve ser o primeiro passo para educar o Brasil. E para conhecer o Brasil é preciso entrar no século 21 e conhecer o agronegócio, com suas qualidades e defeitos.
(*) Aline Locks é engenheira ambiental, cofundadora e atual CEO da Produzindo Certo, solução que já apoiou a maneira como mais de 6 milhões de hectares de terras são gerenciados, através da integração de boas práticas produtivas, respeito às pessoas e aos recursos naturais. Liderou projetos com foco em inovação e tecnologia, como o ‘Conectar para Transformar’, um dos vencedores do Google Impact Challenge Brazil. Recentemente foi selecionada pela Época Negócios como um dos nomes inovadores pelo clima, é uma das 100 Mulheres Poderosas da revista Forbes e uma das líderes do agronegócio 2021/2022 pela revista Dinheiro Rural.
–