Com o apoio do GFI e em parceria com universidades e empresas, Brasil dá primeiros passos para despontar no mapa mundial das proteínas alternativas
Em dezembro de 2020, um pequeno restaurante localizado em Singapura criou um marco na forma com que o mundo deve passar a consumir carne nas próximas décadas. Isso porque, pela primeira vez, uma empresa conseguiu autorização para comercializar a carne cultivada, uma forma de produção do alimento que parte da reprodução celular e dispensa o abate animal. Em pouco tempo, a técnica aprimorada desde 2013 ganhou força e agora conta com produtos capazes de mimetizar a carne de frango, boi, camarão e até o leite materno. Somente no ano passado, de acordo com levantamento do The Good Food Institute (GFI), o setor recebeu US$ 360 milhões em investimentos, seis vezes mais que em 2019.
Com o mercado aquecido em pelo menos dez países, a possibilidade de se produzir uma carne de cultivo celular movimentou startups e grandes empresas – são ao menos 70 mapeadas pelo GFI. Elas dão o tom das diversas demonstrações do produto que tomaram restaurantes ao redor do mundo. O Brasil segue na esteira deste processo e desponta iniciativas que preparam um terreno inevitável para tornar a carne cultivada um produto básico de consumo. Uma previsão da consultoria alemã A.T. Kearney, por exemplo, aponta que 35% da carne consumida no mundo deverá ser produzida a partir da reprodução celular em 2040.
Para seguir alimentando a população, que deve chegar a quase 10 bilhões de pessoas em 2050, a ONU estima que será necessário aumentar a produção de alimentos em 70%. Neste caminho, produtos como a carne cultivada se tornam uma necessidade para garantia da segurança alimentar, em especial porque reduzem o impacto da produção de alimentos no meio ambiente.
A pauta é urgente: o último Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da Organização das Nações Unidas mostrou que os impactos da ação humana no meio ambiente podem ser irreversíveis. Na contramão deste processo, estudo encomendado pelo GFI e GAIA mostra que a carne cultivada pode derrubar a pegada de carbono em até 80%. Pesquisas anteriores também revelam um menor uso de água azul (redução de 51% a 78%) e menor poluição ao ar (redução de 29% a 93%) na comparação com a carne convencional.
Contudo, apesar da urgência climática, o que realmente deve garantir que a carne cultivada chegue aos restaurantes e supermercados e ganhe o público brasileiro e global, é a experiência sensorial idêntica ou ainda melhor que a promovida pela carne animal, além do preço competitivo ou inferior à carne tradicional.
De acordo com a especialista em ciência e tecnologia do GFI Brasil, Amanda Leitoles, o GFI trabalha para entender essas e outras demandas dos consumidores e da indústria, contornando os desafios que esta tecnologia apresenta. “Na área de carne cultivada, mas não somente nela, nosso papel também é o de contribuir para estruturar e articular o ecossistema de inovação”, afirma. “Conectando os atores dessa cadeia, com habitats de inovação, investidores e parceiros”.
No Brasil, startups se preparam – Luismar Porto foi professor do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Química da Universidade Federal de Santa Catarina por anos. Aposentado, hoje se dedica aos estudos iniciais em sua consultoria para trazer a tecnologia ao Brasil. A ideia de investir no modelo começou quando um vídeo de uma aula sua sobre carne cultivada foi publicado no Youtube e teve grande repercussão. “Eu venho falando sobre a possibilidade de se desenvolver a carne cultivada há dez, quinze anos. A tecnologia parte da engenharia de biomateriais e biomédica, dedicada à criação de tecidos humanos”, conta.
Foi também o que aconteceu com Bibiana Matte, fundadora da startup de carne cultivada Ambi Realfood. Por meio de um edital da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul, Matte se tornou a primeira pesquisadora a receber investimentos para desenvolver o produto em uma startup brasileira. Doutora em Patologia Bucal, é também diretora científica da Núcleo Vitro, empresa que estuda produtos para a saúde utilizando o modelo de pele equivalente. “Dentro disso temos um leque bem grande de estudos indo para a parte de pele, de vírus, e ano passado, querendo pensar em outras áreas que a nossa expertise de engenharia de tecidos e de cultivo de células poderia atuar, me debrucei sobre o assunto da carne cultivada”, afirma.
Hoje, com uma equipe multidisciplinar que inclui médicos veterinários, engenheiros de biotecnologia e de processos, biomédicos e profissionais da comunicação, o objetivo de Matte é se tornar a primeira startup a entregar um produto à base de carne cultivada no Brasil.
Ela ressalta o apoio que o GFI deu nos primeiros passos da startup e na consolidação da tecnologia no Brasil. “Nós precisamos trabalhar as nossas próprias tecnologias. Eu não quero que daqui 20 anos a gente esteja importando, porque a gente tem uma tecnologia nacional. O Brasil é muito relevante no cenário de crescimento de animais como um todo para consumo e essa busca por outras alternativas faz sentido para nós”.
Gigantes do setor também prometem acompanhar de perto a evolução da tecnologia no Brasil. É exemplo a parceria celebrada pela multinacional BRF e a Aleph Farms, com apoio do GFI.
Segundo Amanda Leitoles, parte do trabalho da área de ciência e tecnologia do GFI é focado em contribuir com o desenvolvimento de pesquisas de alto impacto e em áreas pouco exploradas, o que ajuda a antecipar os desafios da tecnologia e promover novas soluções. Entre as ações estão a moderação de um diretório de pesquisa, o financiamento a pesquisas de acesso livre e a realização de cursos e formação de profissionais com conhecimento em proteínas alternativas.
Alimentos híbridos – Enquanto as alternativas à base de plantas já possuem um lugar consolidado na dieta dos veganos e vegetarianos, os alimentos híbridos (blended, em inglês) vieram para atingir um público que se importa com saúde e sustentabilidade, mas não quer abrir mão da experiência sensorial e da nutrição associadas à carne animal, os chamados flexitarianos. Incorporar vegetais em pratos tradicionalmente feitos somente de carne, tornando-os híbridos, é uma forma de mudar a dieta dos consumidores sem a necessidade de grandes mudanças no estilo de vida.
A alimentação flexitariana inclui qualquer dieta ou padrão alimentar de quem se compromete a comer mais vegetais e menos carne, mas não busca eliminar todos os produtos de origem animal nem se rotular de forma mais estrita. Os motivos, de acordo com o relatório “The Power of Meat”, lançado em 2020 pela The Food Industry Association (FMI), incluem o fato desses produtos facilitarem uma maior ingestão de vegetais e proporcionarem uma maneira mais saudável de comer carne.
Além de serem melhores para a saúde do consumidor (por conterem menos gorduras saturadas, colesterol e sódio, mais fibras e vitaminas) os produtos híbridos também são melhores para o meio ambiente, uma vez que a pecuária é uma das atividades que mais poluem, desmatam e emitem gases de efeito estufa na atmosfera. Segundo o World Resources Institute (WRI), os norte-americanos comem 10 bilhões de hambúrgueres todos os anos. De acordo com o instituto, se um terço da carne em cada hambúrguer fosse substituída por cogumelos, seria economizada uma quantidade de água equivalente ao uso anual de água doméstica de 2,6 milhões de americanos. Em relação à poluição atmosférica, seria o equivalente a tirar 2,3 milhões de carros – e suas emissões de CO2 – das ruas por ano. Se tratando de terras, o WRI relata que o “blend” nos hambúrgueres reduziria o uso global de áreas agrícolas em mais de 36.260 km2, uma área que equivale a 4.395 campos de futebol.
Fora o impacto ambiental, a estratégia de incrementar vegetais em alimentos de origem animal também pode reduzir os custos de produção e comercialização de vários produtos. No caso da carne cultivada, por exemplo, misturar uma porcentagem de vegetais nas células animais é essencial para baratear sua produção que, apesar de já ser uma realidade, enfrenta desafios relacionados à redução de custos, aumento de escala e regulamentação legal.
No mercado – Enquanto a demanda por carne cresce, ao mesmo tempo em que a demanda por alternativas vegetais também, as empresas que produzem alimentos híbridos se posicionam bem entre as duas categorias. Nos últimos dois anos, gigantes do mercado embarcaram na tendência e adicionaram linhas híbridas aos seus catálogos de produtos. A Tyson, maior processadora de carne dos EUA, lançou pela marca Aidells Whole Blends salsichas e almôndegas de carne com misturas vegetais, como frango com espinafre e queijo feta ou frango com abacaxi desidratado. Já a Applegate criou um hambúrguer híbrido feito de carne de vaca com couve-flor, espinafre, lentilha e abóbora, e outro feito de peru com batata-doce, feijão branco, couve e cebola.
Por utilizarem menos carne animal, eles conseguiram utilizar um produto “grass fed”, ou seja, de animais que foram alimentados naturalmente no pasto, sem o uso de rações com grãos e remédios. Cada hambúrguer da marca (106g) entrega por volta de 1⁄3 de xícara de vegetais.
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